A artista sul-africana Helen Sebidi cria obra sobre o Brasil para a 32ª Bienal de São Paulo

Destaque da 32ª Bienal, que começa em setembro, Helen Sebidi também exibirá o histórico trabalho 'Lágrimas da África'

PUBLICIDADE

Por Camila Molina
Atualização:

ENVIADA ESPECIAL / SALVADOR - “Guardei Lágrimas da África comigo porque, por muito tempo, não sabia o que esse trabalho significava. Queria lê-lo”, diz a artista sul-africana Helen Sebidi. A grande colagem em branco e preto, pintada por Helen entre 1987 e 1988, “é uma síntese de sofrimento”, como afirma o curador da 32.ª Bienal de São Paulo, Jochen Volz. Nesta histórica obra, formada por duas partes, homens, mulheres, crianças e animais, criados com fortes traços a carvão, pastel e tinta sobre papel, estão contorcidos, lamentam, se espremem em uma cena que fala de dores que vão além do apartheid, o duro regime de segregação racial imposto de 1948 a 1994 na África do Sul.

Somente agora, tantos anos depois de sua realização, o díptico Lágrimas da África deixará a casa de Helen Sebidi, em Johannesburgo, para ser exibido em uma sala especial dedicada à artista na 32.ª Bienal de São Paulo, que será inaugurada para o público em 7 de setembro. A participação da sul-africana na edição do evento, entretanto, contará ainda com mais uma surpresa – Helen Sebidi está desde junho em Salvador, na Bahia, criando uma nova pintura para a exposição brasileira, uma espécie de “Lágrimas da África, parte 2”, como define uma das cocuradoras da 32.ª Bienal, a também sul-africana Gabi Ngcobo. “Acho que a comparação é importante para eles (os curadores)”, afirma Helen Sebidi, que recebeu a reportagem do Estado no Instituto Goethe da capital baiana, onde ela está imersa, trabalhando em sua inédita obra.

Aartista sul-africana Helen Sebidino Instituto Goethe de Salvador Foto: VANER CASAES/ESTADÃO

PUBLICIDADE

Desenhando e pintando em um estúdio oferecido no Goethe Institut Salvador, que inaugurou este ano um programa de residências artísticas e acolheu a pintora para suas pesquisas na Bahia, Helen Sebidi guarda suas criações a sete chaves, como que sagradas. “Ela gosta de ter a sua privacidade; diz que é um processo espiritual que acontece lá e não quer distúrbios”, explica Gabi Ngcobo. A própria curadora, que conhece a artista há anos, teve de esperar a permissão de Helen para ver seu ateliê em Johannesburgo. Em uma das visitas de Gabi à casa da criadora, ela avistou Lágrimas da África “atrás da porta”. Não teve dúvidas de que o díptico deveria ser exibido na Bienal.

Nascida em Marapyane, na zona rural de seu país, Helen Sebidi tem 73 anos e conta que não recusou o convite para participar da mostra em São Paulo “pois caso contrário, seria acusada pelos espíritos”. Para a artista, é quase parte de uma missão, ensinada pela amada avó, que a criou e foi sua “grande motivadora”, a de comunicar e promover, através da arte, o “envolvimento de todos” – “arte é esperança por paz”.

Hoje, Helen Sebidi diz que pode ler Lágrimas da África em sua inteireza e densidade, mas é como se ainda guardasse consigo o impacto de ter deixado Marapyane, “lugar muito feliz e onde não era permitido odiar”, para viver em uma Johannesburgo com “muitas brigas e mortes” em pleno apartheid. “Fui ruralista e ia à cidade para trabalhar como empregada doméstica, mas voltava para o campo. Depois que minha avó morreu, tive de decidir o que deveria fazer da minha vida, que foi me mudar, pesquisar.”

Segundo fontes biográficas, Helen Sebidi mudou-se para Johannesburgo com 16 anos, mas foi a avó que a ensinou, na zona rural, “técnicas tradicionais e artesanais de pintura em parede e cerâmica”. A mãe, costureira, também é lembrada pela artista como importante em sua formação informal. “Era como um modo de vida indígena”, considera a sul-africana, sobre a educação pela tradição. Anos depois, na cidade, a criadora frequentou centros de arte e chegou a lecionar para crianças – “o trabalho que ensino é construir uma casa dentro de você”. Em 1975, realizou sua primeira exposição individual na África do Sul e na década seguinte, já uma voz reconhecida em seu país, recebeu, em 1988, bolsa da Fundação Fulbright para viver nos EUA. Para Helen, criar suas obras, geralmente, figurativas, era uma espécie de “cura”.

“Quando comecei a trabalhar (para a 32.ª Bienal), pensei que não queria falar somente para os brasileiros, mas que seria bom envolver, espiritualmente, portugueses, africanos e povos indígenas”, explica a artista. Especificamente, agora, as pinturas corporais dos índios, vistas por ela em obras de “um museu de Salvador”, são o maior interesse de sua pesquisa. Helen Sebidi está, de certa forma, “desapontada”, afirma, por ainda não ter nenhuma previsão concreta de ver, in loco, um pouco desta tradição indígena. “Queria ver como os índios fazem suas pinturas, quais materiais eles usam nessa prática, se são de montanhas, pedras, flores, árvores, folhas”, lembra. “Você não pode andar por aí e dizer que esteve no Brasil; tem de entender o Brasil, sentir o Brasil.”

Publicidade

Pela primeira vez no País, a sul-africana conta que sua experiência na “cidade muito amigável” é a de “um mundo completamente africano”, “com música, de diferentes tambores”. Por outro lado, a linguagem tem sido uma dificuldade. “Na África do Sul, há várias línguas e falamos todas. Aqui é só português e você sente o mundo de um único lado. As três línguas, portuguesa, africana e indígena, deveriam ser faladas no Brasil”, opina.

Histórias de conflitos

“Nunca coloque os dois pés juntos; todo dia, uma perna está para frente e a outra, para trás, e isso é mover com incerteza, isso é criação”, diz a artista sul-africana Helen Sebidi, no Instituto Goethe, em Salvador. Na verdade, sua fala é um comentário sobre o título da 32.ª Bienal de São Paulo, Incerteza Viva, na qual ela é um dos destaques – e, aos 73 anos, uma das mais veteranas.

“Parece que Helen Sebidi sempre ficou vista por seu lado histórico. Queria trazê-la para o presente porque ela ainda trabalha no presente”, afirma a sul-africana Gabi Ngcobo, que integra a equipe de curadores da 32.ª Bienal com Jochen Volz, Júlia Rebouças, Lars Bang Larsen e Sofía Olascoaga. “Helen é uma mulher negra que participou da paisagem dos acontecimentos políticos da África do Sul, mas é uma artista importante”, define a cocuradora, em São Paulo.

A sul-africana Gabi Ngcobo, cocuradora da 32ª Bienal de São Paulo Foto: Sofia Colucci/Divulgação

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

Já na primeira reunião com o curador-geral da edição do evento, Jochen Volz, Gabi Ngcobo chamou a atenção para a exibição da histórica obra Lágrimas da África (1987-1988), da sul-africana, na mostra. Mais ainda, sugeriu que Helen Sebidi passasse uma temporada no Brasil para criar um trabalho inédito.

“Por que as pessoas morriam? Era assustador. Sentia que eu deveria fazer algo e não sabia que estava sendo curada”, lembra a artista sobre a criação do díptico Lágrimas da África e os anos de apartheid em seu país – e quando não era permitido falar sobre a violência daquele regime.

“Era uma época em que os conflitos aconteciam não apenas na África do Sul, mas na Namíbia, Angola, Moçambique”, enumera Gabi Ngcobo. “Entendo Lágrimas da África como um trabalho que tem uma função-chave na trajetória da própria Helen, a de encontrar uma linguagem própria, de conseguir uma formalização figurativa”, comenta Volz.

Publicidade

Segundo o curador da 32.ª Bienal, a participação de Helen Sebidi encaixa-se no subtema das narrativas dentro do tema geral Incerteza Viva, da exposição. “Talvez as narrativas estabelecidas não sejam mais tão claras e a causalidade nas narrativas não seja tão mais linear como nós aprendemos”, afirma o curador. “E dentro dessa ideia de narrativa, interessava pensar a relação entre a África e o Brasil, também aprendendo que essa relação é altamente problemática pela história da escravidão, mas é mais complexa ainda.” “O que se perdeu? O que se projeta no outro lado? Interessante também que tenha hoje uma outra imigração africana no Brasil”, continua Volz.

Nesse campo das narrativas na 32.ª Bienal, o curador destaca ainda, por exemplo, as obras do brasileiro Dalton Paula, que também realizou uma residência artística na Bahia para pesquisar a Rota do Tabaco – e ele criou uma série de pinturas, figurativas, sobre potes de cerâmica; e da zambiana Anawana Haloba, que está fazendo uma instalação sonora sobre o derretimento do sal e o fato de a substância ter sido usado como importante moeda de troca no passado. Jochen Volz cita também o filme da israelense Michal Helfman, sobre ativista de Israel que é contrabandista de produtos para a Síria.

32.ª Bienal de São Paulo- Incerteza Viva tem abertura antecipada

Para aproveitar o feriado, a 32ª Bienal de São Paulo, intitulada Incerteza Viva, vai ser inaugurada em 7 de setembro para o público e não mais no dia 10 do mês. Com a participação de 81 artistas e coletivos, a edição terá abertura para imprensa em 5/9 e inauguração para convidados em 6/9. A mostra ficará em cartaz até 12 de dezembro no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, no Parque do Ibirapuera.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.